domingo, 6 de dezembro de 2009

A bíblia errou? Jesus existiu? O que fizeram de sua doutrina?

Este texto abaixo eu escrevi como resposta em uma lista de discussão.
O assunto em pauta era o ataque ao cristianismo, por alguns que o percebiam como uma doutrina conquistadora e saqueadora por ter liquidado com as civilizações da américa do sul em nome de um missionarismo e de 'levar as palavras de Jesus aos povos ignorantes.'

As questões levantadas eram mais ou menos estas:
A bíblia é verdadeira, uma vez que contém muitos erros? Jesus realmente existiu? A doutrina de Jesus era escravocrata? A doutrina de Jesus era homofóbica? O monoteísmo seria uma ideologia perniciosa, uma desculpa para subjugar, assimilar e conquistar outros povos?

E eis minha contribuição abaixo:

Como introdução e exemplo, cito lembranças da época de 2001, quando ocorreram os atentados. Muitas pessoas acudiram a atacar o islamismo, chamar de doutrina perniciosa, indutora de guerras, de maus tratos a mulheres, etc.
Muito compreensível, pois isso é natural do ser humano - evitar aquilo que sente como ameaça - ainda que seja sinta de forma equivocada, pois em realidade o islamismo não tem nenhuma relação direta com o terrorismo. Alhos e bugalhos.
Eu lembro também de acompanhar muitos programas no rádio e na televisão de líderes muçulmanos explicando que no texto original do Corão não havia mênçãos diretas às praticas condenadas pelo ocidente e sim lições de moral cunhadas em linguagem metafórica. Foi muito construtivo, pelo menos para mim, para entender (um pouco) a visão e o pensamento religioso de uma tradição séria, mas que por ser "estrangeira" (estranha) era vista com desconfiança por muitos. Me permitiu conhecer o outro lado da moeda e não entronizar nenhum sentimento negativo em relação ao alienígena (ou seja, aquilo que em determinado momento venho a ter um contato maior, mas foi gerado e ainda se encontra alheio ao meu mundo e crenças).

Ou ainda, a religião islâmica é uma religião com seus pontos indiscutivelmente de luz e outros pontos controversos. Assim como qualquer outra - mas igualmente, utilizada e interpretada de acordo com a conveniência de alguns grupos para interesses que nada tem a ver com a conotação original.

Com o exemplo acima estou apenas ilustrando o sentimento de "estranhamento ao alheio" e não julgando a situação, que não cabe aqui.

Depois dessa introdução toda, vamos às questões.

1. Realmente, os conquistadores que vieram do velho continente (se dizendo) em nome do cristianismo foram muito destrutivos (talvez os mais destrutivos da história - ou pelo menos conhecemos estes melhor por temos mais documentação histórica...)
Mas precisamos separar muito bem o que são os "cristãos", o que é cristianismo, o que fizeram com o cristianismo ao longo do tempo e o que é que Jesus realmente disse, se é que ele existiu (eu acredito que sim).
Também precisamos separar muito bem tudo isso, do espírito dos conquistadores (saqueadores) desta e de todas as épocas, pois poderiam fazer isso em nome de qualquer religião.
Culturas guerreiras e destruidoras sempre existiram. Culturas guerreiras e conquistadoras se impunham sobre outras, agropastoris. (Assim como os chineses dominaram o Tibet modernamente, justificando-se pelas suas crenças, nada religiosas) A novidade foi um falso sentido de "moral" introduzido pela "civilização" europocêntrica, necessitada de alinhavar "algo" de religioso para justificar o comportamento bárbaro que seria normal em outras épocas.

2. Outro ponto importante é que a Igreja Católica não pode ser tomada como porta-voz único e oficial do pensamento de Jesus (ou, pelo menos, do movimento de idéias original em torno deste nome) pois se trata de uma sub-denominação indireta, um sincretismo de todas as religões da época, criado artificialmente por um imperador para servir de religião aglutinadora de um império romano esfacelado.

3. Não temos, infelizmente, referências ostensivas aos ensinamentos de Jesus que não sejam aqueles escritos em grego. Como se sabe, de uma língua para outra há muitos erros de tradução e acomodamento cultural. Nesta questão, colaborou muito (de forma negativa) o esforço de Paulo no sentido de converter os gregos. Ele não era apóstolo, uma vez que nem conheceu Jesus pessoalmente. Foi reconhecido apóstolo tardiamente, mais pela tradição, do que pela própria comunidade da época, uma vez que os verdadeiros apóstolos que ainda se encontravam vivos reprovavam inteiramente a DISTORÇÃO da mensagem que Paulo introduzia em seus escritos.

4. Muito do que se chama de cristianismo atualmente é na verdade um Paulinismo, com todos os preconceitos e erros de interpretação que saíram da veneta de Paulo e se diferem enormemente do cristianismo original.
Aliás, Jesus não era cristão e nem o seria se vivesse hoje - nem reconheceria este nome pois "cristianismo" é uma "sofisticação" de Paulo para agradar aos gregos da época, utilizando uma palavra grega - "Xristos" que remete a um conceito estranho, tanto ao pensamento de Jesus quanto à religião Judaica. Jesus, no Evangelho Essênio da Paz, se refere a si mesmo como ao cordeiro de Deus - o ser mais frágil da Criação, mas ainda assim, o mais poderoso e muito vivo!
Paulo, por outro lado, o chama de Khristós, que significa "ungido" e era usado como referência ao cordeiro ungido para ser imolado, o cordeiro esfolado por motivos rituais espiatórios, no qual se usa o sangue respingado para limpar pekadós. Ou seja, um cordeiro destruído e morto!! Muita diferença não?

5. Panteísmo, monismo e dualismo são apenas faces da mesma moeda. Para mim. a classificação das religiões nestas denominações, ou em religiões zoomórficas, antropomórficas, etc. só faz sentido por conveniência acadêmica ou para registros históricos. Se formos ver a fundo, estas classificações caem por terra ao conhecermos a religião viva, isto é, o sentimento e o pensamento daqueles que estão embebidos naquela religião e cultura. É claro que para o povo de mente mais simples, o panteão greco-romano, os deuses hindus e as divindades egípcias tratavam-se de realidade concreta, em suas mentes ainda não preparadas para entender aquilo que é abstrato e transcendente. Mas para a elite espiritual que sempre existiu, a Unicidade de tudo sempre foi intuído como verdade...
Tanto mais vale para as outras diferenças doutrinárias das religiões.
Se formos ver o livro "A mente meditativa" de Goleman, ele demonstra isso muito bem. Para o clero regular de cada religião (mais ligado ao transcendente e de cunho mais meditativo e místico), é muito fácil entender o que diz o clero regular da religião vizinha. Se eles se visitarem, serão bem acolhidos e compreendidos, pois apesar das diferenças doutrinárias e de linguagem, acabam falando da mesma essência através da chave da meditação.
Enquanto que para os cleros seculares (os religiosos mais ligados à forma externa da religião aos assuntos do dia-a-dia) as discordâncias e picuinhas religiosas entre as mesmas linhas vizinhas seriam várias e irreconciliáveis!

6. Deixando de lado as passagens paulinas, que para mim não valem, precisamos interpretar as outras passagens do evangelho de acordo com a chave da linguagem metafórica de Jesus.
No evangelho de Tomé, Jesus diz que precisamos entrar na casa daquele que é forte, atar suas mãos com corda para depois matá-lo. Lógico que ele não está dando a receita de como roubar casas alheias, e sim falando de como lidar com os pecados, isto é, como limpar a parte impura do coração do homem.
Também na linguagem de Jesus, escravo é todo aquele que está enredado no pecado (sua parte negativa, impura, seu eu menor) e livre é todo aquele que ouve ao Pai (volta para a pureza da natureza).

7. Há muitas outras passagens onde Jesus não se mostra nem próximo do pensamento escravagista (como nas passagem em que recomenda libertação da prisão e perdão das dívidas - usando inclusive metáforas financeiras, que naquele tempo, a dívida era motivo de escravidão) e ainda muito longe de ser homofóbico. Como exemplo, o aforismo 22 do Evangelho de Tomé, onde Jesus recomenda:
"22. Jesus viu crianças de peito a mamarem. E ele disse a seus discípulos: Essas crianças de peito se parecem com aqueles que entram no Reino. Perguntaram-lhe eles: Se formos pequenos, entraremos no Reino? Respondeu-lhes Jesus: Se reduzirdes dois a um, se fizerdes o interior como o exterior, e o exterior como o interior, se fizerdes o de cima como o de baixo, se fizerdes um o masculino e o feminino, de maneira que o masculino não seja mais masculino e o feminino não seja mais feminino - então entrareis no Reino."
É lógico que Jesus não estava falando de sexo, mas sim da Alquimia interior, ao dizer do "se fizerdes um o masculino e o feminino". Mas ainda assim, não parecem palavras de um homofóbico. Parecem sim, palavras de Um que Conhece, um gnóstico.

8. Não acho que existam erros na bíblia. Simplesmente, porque o que hoje nós classificamos como "erros" (imprecisões históricas e geográficas, narrativas fantásticas, "liberdade poética" na narração e disposição de fatos na linha do tempo, inverdades científicas) eram apenas a maneira natural de narração de histórias das pessoas naqueles tempos. Muito mais comprometidas com o fundo moral e arquetípico do que com a precisão histórica e rigor científico do estava sendo narrado. Pois afinal, esta necessidade acadêmica de precisão é moderna e faz parte do NOSSO paradigma e visão de mundo, não do deles.
Além disso, considero a bíblia como exatamente isso - uma bíblia, ou seja uma coleção de livros. Uma coleção de livros que trazem a moral, a tradição histórica e também os preconceitos e julgamentos de um povo, nada mais que isso. Vista desta maneira a bíblia apenas é como é. Por outro lado este fato não tira o valor da bíblia de forma nenhuma! Embora alguns acreditem assim, não penso que para a bíblia ter valor, ela só poderia ser diretamente "a palavra de Deus", estar absolutamente certa e não ter nenhum "erro"! Dessa forma, se fizermos uma leitura nada literal dela ou de qualquer texto ou tradição do mundo, vamos achar tesouros...

Muito embora o próprio (ou talvez não existente...?) Jesus tenha dito, no Evangelho Essênio da paz:
"Deus não escreveu as leis nas páginas dos livros, senão em vosso coração e em vosso espírito. Encontram-se em vossa respiração, em vosso sangue, em vossos ossos, em vossa carne, em vossos intestinos, em vossos olhos, em vossos ouvidos e em cada pequena parte de vosso corpo. Estão presentes no ar, na água, na terra, nas plantas, nos raios do sol, nas profundidades e nas alturas. Todas vos falam para que entendais a língua e a vontade do Deus Vivo. Porém vós cerrais vossos olhos para não ver, e tapais vossos ouvidos para não ouvir. Em verdade vos digo que a escritura é a obra do homem, porém a Vida e todas as suas hostes são obra de nosso Deus. Por que não escutais as palavras que estão escritas em Suas obras? E por que estudais as escrituras mortas, que são a obra das mãos do homem?”