terça-feira, 11 de novembro de 2008

Shokado

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Numa noite em 1959, enquanto estava acordado na cama, experienciei um evento que reuniu a biologia e a psicologia para mim, cristalizando minha compreensão de que o nosso self é o processo evolutivo em continuação.
Estava deitado de costas, alongando partes tensas do meu corpo e sentin­do-as relaxar. Sem que eu sequer percebesse, isto deu início a uma onda de pulsação na minha parte frontal, para cima e para baixo. Senti meu cérebro se abrir. E tive a visão de uma serpente, verde e vívida, que parecia espiralar-se para fora dos meus intestinos até dentro da minha cabeça. Na noite seguinte aconteceu a mesma coisa, à exceção de que, desta vez, quando a serpente se insinuou na minha cabeça, pareceu entrar num anel prateado.
Enquanto eu podia ver a serpente se movendo dentro de mim, também sentia que eu mesmo era a serpente. Oscilei para frente e para trás entre estas duas percepções: objetivo e subjetivo. Havia a serpente lá fora e havia a sensa­ção de fluxo dentro de mim. Eu tinha a visão e tinha o sentimento. E o pêndulo da minha percepção, oscilando, criou um campo em forma de ovo que, para­doxalmente, se estendia infinitamente em todas as direções.
Nos anos seguintes, aperfeiçoei a conexão com a minha serpente. Come­cei a perceber a relação entre o seu fluir e o meu processo de ser formado, meu processo de me tornar mais do que costumava ser. Comecei a aceitar uma espiral excitatória ascendente e externa, descendente e interna — uma expres­são da minha excitação alternadamente limitada e ilimitada, contida e incontida. Senti que a minha serpente era meu eu. Sempre que a experienciava na perife­ria do meu corpo e nas minhas profundezas, podia sentir que ela me penetrava por inteiro. E, à medida que comecei a viver este sentimento, comecei a desen­volver uma qualidade de ser um campo de excitação formando-se e aumentan­do continuamente.
Um dia, no outono de 1964, à medida que eu sentia a luminosidade das minhas correntes, fiquei atento ao fluir intenso da minha serpente dos meus intestinos para cima, na área do esterno, tanto dentro quanto fora. Eu podia ver e podia sentir a corrente de excitação crescendo dentro de mim, me formando numa pessoa mais coração. Poucas noites depois, uma noite agitada, experienciei primeiro uma dor no peito e depois o fluxo perfurando meu dia­fragma. Minha imagem era a de uma serpente irrompendo pelo centro de uma parte laranja. Durante todo o dia seguinte, fui envolvido por um calor circulante que vinha de dentro de mim e me alimentava. Meu mundo era vibrante e inten­so, os poemas brotavam de dentro de mim — me formando e informando.
Pouco depois tive mais duas experiências-serpente que expressavam pa­drões similares de percepção e participação crescentes. Numa ocasião, fiquei atónito ao perceber uma serpente deitada, enroscada num campo perto da mi­nha pelve. Mais tarde, naquele mesmo mês, experienciei uma serpente não enroscada erguendo-se e tentando entrar na minha cabeça. Minha reação nos dois casos foi de pânico, até que compreendi que, para qualquer lugar que pudesse dirigir a sua expansão — cabeça, peito, diafragma, pelve — a serpente era eu, e eu era amistoso. A serpente era eu e, ao mesmo tempo, estava me formando e me ampliando, um eu expandido. Era minha vida atual e era a minha promessa de mais vida.

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A serpente é a minha visão pessoal do processo formativo, como ficará claro em outro evento ocorrido. Nesta ocasião específica, experienciei fortes correntes subindo pêlos dois lados do meu corpo, e então vi não uma, mas duas serpentes. Originando-se de uma só cauda na minha bacia pélvica, uma ser­pente se enroscou pelo meu lado direito, para cima, e a outra pelo meu lado esquerdo. Era como se elas estivessem mantendo um diálogo, e elas o manti­nham dentro do meu cérebro. Ali pararam, como se estivessem se cumprimen­tando. Então suas cabeças fundiram-se.
Olhando para o formato do diálogo das serpentes, percebi que formavam um recipiente em forma de "looping". As serpentes se abrem a partir da pelve e formam um recipiente. Elas se cruzam uma vez. Então fecham o recipiente. Em vez de continuar desenhando oitos, elas circulam novamente sobre si mes­mas e uma sobre a outra. Uma parte essencial desta circulação é a pausa das cabeças das serpentes antes de se fundirem. E na pausa que um acordo é medi­ado sobre o que não será configurado, o que será novamente configurado e o que será configurado de maneira nova — do quê abrir mão, o que manter e o que conter.

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Embora sejam eventos distintos, há uma relação entre o fluxo da serpente e o fluxo da respiração. Ambos trazem à tona o sentimento de um processo de expansão e contração. Frequentemente, ao prender nossa respiração, pode­mos sentir mais facilmente as pulsações e correntes que ocorrem dentro do nosso corpo e, às vezes, na sua superfície. O movimento viaja dos pés à cabe­ça, da cabeça aos pés.
À medida que a serpente e eu formamos nossa relação, comecei a sentir que havia uma mudança qualitativa e quantitativa acontecendo no fluxo da minha excitação, da pelve para a cabeça e da cabeça para a pelve. A serpente se contorcia a partir da minha barriga como um impulso indefinido de amor e carga. Seu impulso se suavizava à medida que passava pelo coração, pelo cen­tro de mim. Quando subia para dentro da minha cabeça, gerava uma imagem ou um insight, uma percepção refinada, distinta de uma percepção global. Se eu estivesse canalizando energia da cabeça para baixo, minhas imagens-pensamento primeiro desfaziam seus limites; então a excitação da minha serpente se intensificava no seu curso descendente através do peito e para dentro da pelve, pernas e pés — iluminando e vivificando minha conexão com meu entorno indiferenciado, meu vácuo criativo.
Gradualmente, aprendi que minha serpente é o contínuo da minha excita­ção, a geradora de padrões do meu imaginar, sentir e agir. Ela recapitula, ex­pressa e re-expressa minha história molecular e celular, meu viver social passado e presente. E a circulação da minha bio-história me enraíza na carne. A serpen­te é o meu oráculo do processo formativo.
* * *

A serpente opera segundo suas próprias leis. No mundo da serpente, os limites cotidianos de tempo e espaço parecem se ampliar. O espaço parece ser infinitamente estendido, e o tempo não está mais confinado a uma progressão linear. Parece não haver uma passagem do tempo. Nem há uma qualidade de passado-presente-futuro. O fluxo da excitação se revela como lampejos de uma luz estroboscópica ou como padrões visuais num caleidoscópio. Há percepção e recordação de eventos, mas os eventos não pertencem à sequência do relógio.
Minha experiência da serpente me levou a entender que há diferentes campos da existência. Uma parte de mim é formada no mundo do espaço-tempo. Outra parte de mim cria o espaço-tempo.
O que é pessoal também é universal. A serpente que percebi como sendo meu eu no processo de formação é uma imagem arquetípica que quase todas as culturas empregaram para representar o processo de crescimento e transfor­mação da vida. Esta qualidade evolutiva da expressão se desdobra como as ondas do mar, a hélice dupla do DNA, os padrões espiralados dos vasos sanguíneos e dos nervos, os ritmos do acordar e dormir, ficar de pé e deitar, se sentir separado e se sentir uno.
A serpente é minha imagem de movimento entre o mundo horizontal e o mundo vertical. Ela me ensina como acordo e como me acalmo, como faço contato e me desprendo. É uma imagem de estimulação e renovação que ex­pressa o movimento serpentino da excitação do meu corpo tecendo continua­mente as dobras do meu cérebro. Sou eu falando comigo mesmo sobre meu próprio processo formativo, sobre minha excitação tornando-se pessoal e, de­pois, social. Parece-se com a imagem de Henry Miller de caminhar pela Ponte do Brooklin, indo da casa para o trabalho, da casa para fora-da-casa — do inconsciente para o consciente e novamente de volta.
Seu próprio símbolo pode vir a você num sonho, num devaneio, ou en­quanto você está fazendo amor. Ele volta de novo. É o seu amigo. E revela a você o modo como você se conecta com o universo e com os outros. É impes­soal, mas você o torna pessoal. A ponte de Miller não pertence a ele, mesmo assim ele a tornou sua. A serpente não pertence a ninguém, mas eu a tornei minha.'

Stanley Keleman
"O corpo diz sua mente"
páginas 122 a 125
Postado por MaFê

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